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Compreender ou Conhecer?

No último ano (2022), decidi ler um dos grandes volumes da obra de Jung por inteiro. Sendo eu uma pessoa que frequentemente gosta de conversar sobre questões que envolvem cultura e sociedade, ainda mais estando em uma área do conhecimento – a psicologia – que visa muito uma análise subjetiva dos casos, pensei que poderia gostar de ler o volume Civilização em Transição. Assim, comecei a me debruçar.

Neste texto, gostaria de elaborar um par de conceitos que se fixaram em meu pensamento – e em minhas discussões cotidianas – desde que reli Presente e Futuro, a obra inicial do volume Civilização e Transição; acentuo a questão da releitura, pois foi um dos primeiros livros de Jung que li, mas, na época, esses conceitos me passaram batidos, nem me lembrava de tê-los visto, mesmo que o autor tivesse falado consideravelmente sobre eles – o que ficou para mim da primeira leitura foram mais suas análises sobre os fenômenos políticos. Enfim, pude perceber como meu interesse de leitura muda de tempos em tempos e como isso influencia na minha percepção do texto, especialmente em um autor tão vasto.

Esse par de conceitos aos quais me refiro são: compreensão e conhecimento. Inclusive, recomendo que tentem refletir em alguma diferenciação entre os dois, pode ser divertido para comparar com as ideias de Jung que apresentarei em seguida.

Desde que passei a reparar nesses conceitos, passei também a utilizar deles em praticamente qualquer conversa que envolvesse psicologia, pois me parece que muitas vezes não se leva em consideração um aspecto bastante importante para qualquer ciência que pretenda estudar o ser humano, isto é: nós temos um aspecto estatístico/coletivo e um aspecto profundamente individual/subjetivo, simultaneamente.

Tentando um exemplo: eu, João, me enquadro em uma série de categorias coletivas – que compartilho com diversas pessoas –, como Homo sapiens, homem, brasileiro-latino, branco, etc. No entanto, existe um aspecto de mim que escapa a essas categorias. Ainda que eu seja tudo isso e mais um pouco, sou diferente dos outros Homo sapiens, sou diferente dos outros homens, sou diferente dos outros brasileiros-latinos e sou diferente dos outros brancos; e cada uma das pessoas que compartilham comigo essas características têm também as suas próprias.

Carl Jung e Marie-Louise von Franz se utilizam de um ótimo exemplo – ao qual acrescentei algumas firulas –  para compreender essas categorias que compartilhamos com outros semelhantes: tomemos um colecionador de pedras que precisa tirar a média do diâmetro das pedras de sua coleção e chegou no valor de 4 cm de diâmetro médio; alguém que gosta muito desse colecionador resolveu confeccionar uma caixa com 4 cm de diâmetro para presenteá-lo, mas, quando o colecionador foi colocar as pedras, a maioria não coube e as que couberam ficaram chacoalhando na caixa por sobrar muito espaço, o que poderia danificá-las. Para ilustrar mais, podemos pensar que, em uma coleção de quatro pedras raríssimas, uma com 8cm de diâmetro, outra com 5cm, outra com 2cm e mais uma com 1cm, podemos tirar a média 8+5+2+1 = 16, 16/4 = 4cm de diâmetro médio; contudo, nenhuma das pedras tem 4cm de diâmetro exatos.

A questão que quero trazer é que, especialmente na psicologia, é exatamente com esse efeito que lidamos. Dentro dessa área, utilizamos ainda outras classificações estatísticas, a exemplo dos diagnósticos psicopatológicos – hoje muito famosos –, como depressão, ansiedade, borderline, etc. O que as pessoas que cunharam esses conceitos fizeram foi – de forma exageradamente simplificada aqui – observar um grupo de comportamentos – uso comportamento aqui em sentido amplo e não teórico – que se repetiam em várias pessoas e, assim, deram um nome a esses acontecimentos em comum, transformaram em categoria; depois traçaram um plano de tratamento, dentre outros estudos possíveis. Outras categorias estatísticas, para exemplificar melhor, são tipos de personalidade e tipos de atitude – este ao qual se estuda muito em psicologia analítica -, pois a pesquisa estatística frequentemente classifica os fenômenos de repetição com o que chamamos de “tipos”, quando algo é típico.  

O ponto é que, mesmo que tenhamos esse conceito que diga de um fenômeno coletivo e vise descrevê-lo, na prática, se buscarmos um sujeito exatamente igual ao descrito e considerarmos que ele será exatamente igual ao que está no livro, estaremos correndo o mesmo risco da pessoa que fez a caixa de 4cm para o colecionador. Estaríamos trabalhando com um sujeito que não existe, pois o que está descrito no diagnóstico é somente uma média. Cada pessoa dentro de um diagnóstico demanda um tratamento específico, seja um ansioso, seja um depressivo, seja um neurótico, seja um esquizofrênico. Em psicologia, tratar o sujeito como uma materialização do que está descrito nos livros de diagnósticos estatísticos, geralmente, significa violentá-lo e não o compreender.

E aqui retomo os conceitos de Jung: o conhecimento, para o autor, diz respeito justamente a esse saber estatístico, a estudar o coletivo da psicologia, o que se repete nos diversos sujeitos; já a compreensão é o contrário, é o saber individual e subjetivo, é compreender esse sujeito que surge na clínica em sua singularidade, sem tentar enquadrá-lo em categorias gerais.

Da forma como construí o texto até aqui, posso ter dado a entender que a parte que se refere ao conhecimento é inferior à compreensão, mas não é sobre isso! É mais sobre saber o lugar de cada coisa. Além do mais, escolher somente um dos lados e defini-lo como melhor seria excluir parte do que diz respeito à experiência humana e à psique, levando em consideração que tanto a coletividade quanto a individualidade fazem parte de nós. Eu, João, mesmo tendo minhas subjetividades, ainda compartilho várias características com diversas pessoas, o que muitas vezes nos conecta, seja para bem ou para mal. A verdade estatística é uma ferramenta essencial para qualquer profissional que trabalhe com pessoas, o que desemboca em uma importante crítica feita por Jung à teoria da ciência.

Da forma como era entendida em sua época de trabalho entre os anos 1900 e 1960, a ciência era fortemente pautada pela estatística, então, algo para ser válido deveria passar por teste quantitativos, sendo essa uma ideia que perdura intensamente até hoje; com sua devida razão pelos motivos que coloquei acima. Contudo, aí entra a crítica, se nosso objeto de pesquisa tem como característica um fator individual profundamente relevante, estaremos abandonando o que é científico ao valorizar essa questão subjetiva? 

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